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20 de Abril de 2024

Para que nunca mais se esqueça!

há 9 anos

Para que nunca mais se esquea

Por Mariana Py Muniz Cappellari

Comecei a gestar essa coluna, ainda na semana passada, mais precisamente nas madrugadas da terça para a quarta-feira e da quarta para a quinta-feira, enquanto atônita assistia a TV Câmara. Em meio as mais disparatadas falas, eis que carentes de argumentos, constituindo estas, em muitos casos, apenas mera retórica, no seu sentido pejorativo mesmo, de discurso vazio e populista punitivo, na espécie; dei-me conta, não que não soubesse, mas de forma talvez mais clara, da importância do direito à memória e à verdade para a confecção de um presente democrático, embora já tenha assinalado que em termos brasileiros não obtivemos uma ruptura nesse âmbito, contribuindo a isso o fato de que não colocamos à mesa e à discussão o nosso legado autoritário, o qual não nasce com a ditadura militar, mas da história mesmo de formação do Brasil enquanto nação, e tampouco morre com a instauração de uma ordem constitucional democrática, o que bem podemos visualizar na semana passada, a qual nos deu vários exemplos disso.

Pois bem, mas por que me volto a isso? Penso que temos maior facilidade em desprezar aquilo que não vivenciamos e que tampouco conhecemos. Quando já nascemos em uma ordem que se diz democrática de direito, só podemos evocar a memória de algo que não vivemos, através da retenção de conhecimentos que adquirimos e que nos traduzem impressões. Daí a indispensabilidade da discussão como forma de valorização dessas conquistas em termos civilizatórios.

Faço aqui um paralelo com a chamada resolução do pesar, tão bem trabalhada pelos psicólogos e psiquiatras. Tal ocorre com a morte de alguém, pois muitas vezes só resolveremos o nosso pesar daquela perda sofrida com toda a ritualística do enterro ou da própria cremação. Ou seja, precisamos visualizar esse ritual a fim de que internamente possamos concretizar que aquela pessoa que morreu se foi e não mais voltará. Por isso, a importância das Comissões da Verdade, saudadas pela Corte Interamericana de Proteção dos Direitos Humanos, quando trabalha com o direito à memória e à proteção jurídica, o qual abrange esse último, a investigação, o julgamento e o processo, ressaltado no caso brasileiro, na sentença do Caso Gomes Lund e Outros ou ‘Guerrilha do Araguaia’.

Nesse sentido e acerca da referida decisão proferida pela Corte Interamericana, preciosas são as palavras de Giacomolli[1]: “(…) O que o Brasil está tentando, atualmente, é cumprir o reconhecido direito à memória, isto é, não só as famílias dos desaparecidos, mas toda a cidadania possui o direito de saber a motivação dos desaparecimentos, como e por que ocorreram, onde se encontram os restos mortais. O escopo não é o de vindicta, mas o de estabelecer uma aproximação à verdade e evitar que as graves violações de direitos humanos sejam esquecidas, repetidas e juridicamente perdoadas. (…).”

Quando tinha 11 anos de idade li pela primeira vez o Diário de Anne Frank. Uma amiga de minha mãe, professora de escola particular à época, tencionava em me afirmar que o livro seria muito pesado para uma menina da minha idade, pois Anne o escreveu quando tinha 13 anos de idade, no período aproximado de 12 de junho de 1942 a 01 de agosto de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de ser um diário de uma menina de 13 anos de idade, Anne, judia, relatava as suas percepções da guerra e contava o seu dia a dia no esconderijo em que morava com a sua família, o qual no ano de 2013, em visita a Holanda eu tive a oportunidade de conhecer.

Posteriormente, quando, então, com 18 anos de idade, ainda recentemente feitos, já na faculdade, portanto, li o livro Brasil: Nunca Mais, uma importante documentação sobre a história do Brasil, mais precisamente do período que compreende os anos de 1979 a 1985, fase final da ditadura militar no Brasil. A leitura a mim foi impactante, pois o livro se inicia com a descrição dos modos e instrumentos de tortura, desde o pau-de-arara, choque elétrico, a pimentinha e dobradores de tensão, o afogamento, a cadeira do dragão, a geladeira, até o uso de insetos e animais, produtos químicos, lesões físicas, além de outros modos e da descrição da tortura realizada em crianças, mulheres e gestantes. Entretanto, o seu relato não para aí, pois segue discorrendo sobre a origem desse sistema repressivo, a consolidação do Estado Autoritário, a montagem do aparelho repressivo e das suas leis, o perfil dos atingidos, revelando a subversão do direito na formação dos processos judiciais, exemplificando com casos reais, inclusive, para finalizar com a intimidação provocada pela tortura, além dos seus limites extremos. O livro contém ainda uma série de anexos.

Tento com isso evocar as minhas impressões nessa altura, pois penso que a reprodução desmedida de pensamentos punitivos e autoritários dormita no esquecimento, na ausência de uma resolução do pesar de nós brasileiros. Enquanto não evocarmos esse passado para que possamos compreender a importância, a grandeza e a magnitude de se viver em uma democracia, estaremos sujeitos a um projeto governamental de controle que se vende na promessa de segurança e na concretização da vontade de uma maioria.

Por primeiro, então, cabe asseverar, que tal segurança prometida é falsa, por sinal, pois o tempo tratou de quebrar com a segurança, e, embora hoje vivamos mais seguros do que no passado, eis que inclusive vivemos mais, ainda somos inseguros, porque não há certezas, nem a ciência, tampouco a fé em Deus nos deu respostas as nossas maiores angústias, que persistimos nos negando a pensar sobre as mesmas, por isso o uso desmedido de medicamentos, drogas lícitas e ilícitas, compulsões por comida e consumo e etc.

Segundo, no que diz com a concretização da vontade de uma maioria, é interessante observar que as falas relativas à redução da maioridade penal, por exemplo, as quais deram origem a essa coluna, migraram da necessidade de redução da criminalidade, até porque ínfima no âmbito dos adolescentes, sendo estes as maiores vítimas da violência e, também, porque impossível comprovar a correlação entre penas mais altas e severas com a efetiva prevenção de crimes; para a concretização da vontade de uma maioria, aclamada por nossos parlamentares sob o manto de povo.

Entretanto, quem é o povo de que falam os nossos parlamentares? Como sabem eles o que o povo quer e o que pensa? Por intermédio de pesquisas de opinião? O quanto essas pesquisas são fidedignas? Trago aqui as reflexões de Zagreblesky[2] nesse ponto, quando afirma que se deve recusar a ilusão de uma democracia baseada diretamente na voz do povo (já que escreve sobre a crucificação de Cristo e sua relação com a democracia), pois sua forma atual seria a democracia das pesquisas de opinião, o que não é necessariamente a prova de uma democracia.

De acordo com o referido autor: “(…) A pesquisa de opinião pode ser um instrumento útil e lícito da democracia enquanto permanecer no âmbito privado da previsão de comportamentos coletivos. Mas, se ela se tornar instrumento de governo, altera a luta política, jogando nela o povo, e suas supostas orientações, não como sujeito vivente, mas como um corpo morto, uma força bruta à qual se dá e se tira a voz, dependendo daquilo que interessa. Um povo que é capaz de iniciativa política e que sabe usar a própria voz não precisa de pesquisa de opinião. (…).”

Até que ponto a concretização da vontade de uma maioria é democracia mesmo? A condenação de Jesus, conforme evoca o autor, foi realizada pela vontade da maioria do povo, e independentemente de se crer ou não em Jesus, o fato é que uma massa emotiva e irracional clamou pela sua crucificação.

Talvez, então, tudo isso nos sirva a refletir, pois conforme encerra Zagrebelsky: “A multidão que gritava crucifique-o! Era exatamente o contrário do que a democracia crítica pressupõe: tinha pressa, era atomística, mas totalitária, não tinha instituições nem procedimentos, era instável, emotiva e, portanto, extremista e manipulável… Uma multidão terrivelmente parecida com “o povo” ao qual a “democracia” poderia confiar o seu destino no futuro próximo.”

Tentando retomar a importância do direito à memória e à verdade para a consolidação de uma democracia crítica, na visão de Zagrebelsky, finalizo com o epílogo do livro Brasil: nunca mais.

“Meu pai contou para mim;

Eu vou contar para meu filho.

Quando ele morrer?

Ele conta para o filho dele.

É assim: ninguém esquece.”

(Kelé Maxacali, índio da aldeia de Mikael, Minas Gerais, 1984)

Até semana que vem!

Fonte: Canal Ciências Criminais

__________

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal. Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015.

[2] ZAGREBELSKI, Gustavo. A crucificação e a democracia. São Paulo: Saraiva, 2011.

Para que nunca mais se esquea

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Embora seu texto tenha alguns argumentos sólidos, fundamentados em críticas à democracia já expressas por Platão e Nietzsche, se mistura com algumas falácias (falsos argumentos) e temas não correlatos. Fatos que maculam a idoneidade do mesmo ao debate.

O próprio Platão afirmou que as palavras são máscaras que escondem as intensões do interlocutor (estava criticando os sofistas) e a capacidade de decisão da Ágora que era baseada na votação direta majoritária (democracia direta) na qual os cidadãos votavam diretamente nos assuntos públicos da cidade. Como ele considerava-se mais preparado intelectualmente para a tomada de decisões melhores, ele defendeu que o filosofo governasse e legislasse.

Nietzsche afirmou que o sistema uma pessoa um voto privilegia a opinião dos mais fracos, dos menos qualificados, pois os melhores são minoria. Porém ele não propôs qualquer solução (filosofia do martelo).

Pessoalmente eu reconheço os vícios da democracia, mas ainda não conheci nenhum sistema melhor e legítimo para tratar sobre as questões públicas.

Pessoalmente sou contra a redução da maioridade penal, não acho que resolva o problema da violência, não acho uma medida justa para com os jovens e até acredito que os temas polêmicos estejam sendo introduzidos na pauta do legislativo para que os presidentes das casas legislativas não sejam colocados em foco como indiciados em investigações da PF, e que a mídia acabe se focando nas polêmicas (cortina de fumaça).

Em relação à "ditadura" a Sra apenas fez a falácia do apelo à emoção. Pois em nada as torturas se ligam à discussão da legitimidade, eficácia e justiça da redução da maioridade penal. E como as entrelinhas de seu texto dão a entender sobre os vícios específicos apontados no sistema democrático, a própria senhora suporta argumentos que podem dar suporte à ideia de uma tecnocracia autocrática. continuar lendo