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23 de Abril de 2024

Em que país R$ 20.000,00 é insignificante?

há 9 anos

Por Vilvana Damiani Zanellato

Na última semana, muitos canais jurídicos reproduziram notícia de julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o princípio da insignificância e alguns critérios para a sua aplicação.

Há quase uma década tenho estudado o tema de modo aprofundado[1] e, ao se tratar justamente sobre os critérios, destaco uma hipótese, em especial, que me parece inaceitável: o parâmetro de R$ 20.000,00 para o delito de descaminho (art. 334 do CP).

A simplista aplicação de referido princípio submisso à mera tarifação oriunda das searas administrativa e/ou fiscal, sem se atentar às desastrosas consequências que tal proceder geram à coletividade, ultrapassa qualquer justificativa dogmática de intervenção penal mínima[2] ou relacionada à própria questão da política criminal.

Foi por essa razão que a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgado da lavra do Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ[3], com muita lucidez, alterou o entendimento até então adotado no sentido de que uma mera Portaria do Ministério da Fazenda[4] poderia, em outras palavras, determinar o que é ou não insignificante na esfera penal.

Não obstante a valorosa alteração da jurisprudência na Corte Superior, a mudança somente será suficientemente selada se o Supremo Tribunal Federal seguir a mesma diretriz, demonstrando que defende o equilíbrio entre a salvaguarda das liberdades individuais e a eficiência estatal concernente aos direitos e às garantias fundamentais da coletividade como um todo, fazendo valer o garantismo penal na sua integralidade.

Ainda que muitos entendam de forma diversa, inúmeros motivos levam ao entendimento da inaplicabilidade do critério da tarifação afastado, acertadamente, pelo Superior Tribunal de Justiça.

Ao discorrer sobre o tema na obra “Garantismo Penal Integral”[5], foi me proporcionada a honra de expor uma série de motivos pelos quais entendo totalmente equivocada referida tarifação.

Aproveito a oportunidade neste espaço para elencar alguns deles lá apontados:

- os procedimentos que não ultrapassam o valor estabelecido pelo Ministério da Fazenda são apenas administrativamente arquivados, sem baixa, revelando que a dispensa é apenas temporária e não definitiva.

- é inviável considerar penalmente irrelevante conduta devidamente tipificada no ordenamento ao argumento de que na seara administrativa é insignificante, porque (além de não ser insignificante no âmbito administrativo) as esferas são independentes e a dispensa (momentânea, diga-se) somente ocorre em razão do alto custo para a máquina estatal em efetivar a cobrança judicial dos impostos iludidos.

- não se pode deixar ao encargo da legislação extrapenal definir o que é criminalmente relevante, notadamente se tal proceder é decorrente de interpretação feita sem observância sistemática e ao esquecimento dos princípios constitucionais da moralidade e da eficiência.

- nosso País apresenta alto nível de miserabilidade, em parte, causada pela prática dos chamados delitos econômicos e tributários, pois, diante da ausência de pagamento, seja pela sonegação seja pela aplicação do princípio da insignificância da dívida reconhecida pelo Estado, menos se arrecada e menos se pode subsidiar em relação à saúde, à educação, ao saneamento básico etc.

- os débitos, ainda que não judicialmente executados, são inscritos em Dívida Ativa da União e são cobrados pela Procuradoria da Fazenda Nacional administrativamente, mediante envio de cartas de cobrança e a inclusão no CNPJ/CPF no cadastro de inadimplentes[6], não havendo, portanto, que se falar em irrelevância administrativa: o principal argumento que dá fundamento à aplicação do princípio da insignificância pelo Supremo Tribunal Federal.

- o critério da tarifação não se coaduna com os pressupostos mínimos necessários ao reconhecimento do princípio da insignificância estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista: a) não ser socialmente vulnerável o agente do delito de descaminho nos altos valores aqui discutidos; b) envolver, na condição de vítima não apenas o Estado, mas todos os cidadãos; e c) ser perpetrado, na maioria das vezes, referido crime junto de outras infrações graves e por meios nada irrelevantes, como a fraude para burlar o fisco.

Se é certo que não se deve fazer incidir o Direito Penal sobre condutas penalmente irrelevantes, não é menos certo que para serem consideradas socialmente insignificantes não podem lesar substancialmente direitos fundamentais individuais e sociais, outros que, a princípio, embora não se mostrem diretamente atingidos, sofrem lesão que afeta toda a coletividade.

Manter a diretriz que se entende equivocada é o mesmo que atentar aos conceitos fundamentais da teoria da insignificância penal e desatender às normas e aos preceitos constitucionais que objetivam preservar a ordem social, econômica e financeira. Essas, quando atingidas, traduzem-se em menos educação, menos saúde, menos segurança pública, menos saneamento básico, menos estrutura, menos tudo que há de essencial ao mínimo bem estar e dignidade do indivíduo de qualquer geração – criança, adolescente, jovem, adulto, idoso – em um País que apresenta alto nível de miserabilidade e de desigualdade social[7].

A questão, especificamente ao crime de descaminho, é emblemática e persiste a necessidade de melhor reflexão, de exame mais aprofundado, de um processo de harmonização e de sincronização.

Afinal, só no Brasil R$ 20.000,00 é insignificante...

Fonte: Canal Ciências Criminais

__________

[1] ZANELLATO, Vilvana Damiani. A aplicação sem critério do princípio dainsignificância no delito de descaminho. In: FISCHER, Douglas (Org.). Direito penal especial. T. II. Brasília: ESMPU, 2014, p. 315-382. (Série Pós-Graduação, v.3.).

[2] “A necessidade social deve ser o critério justificador fundamental para a intervenção das normas incriminadoras. (...) o princípio da intervenção mínima ou da ultima ratio significa que a intervenção do Direito Penal deve restringir-se ao mínimo necessário à manutenção da harmonia social” (GALVÃO, Fernando. Direito Penal: Parte geral. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 137-8).

[3] RECURSO ESPECIAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. VALOR DO TRIBUTO ILUDIDO. PARÂMETRO DE R$ 10.000,00. ELEVAÇÃO DO TETO, POR MEIO DE PORTARIA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA, PARA R$ 20.000,00. INSTRUMENTO NORMATIVO INDEVIDO. FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. INAPLICABILIDADE. LEI PENAL MAIS BENIGNA. NÃO INCIDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum tese jurídica que, apoiada em mera opção de política administrativo-fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa da autoridade fazendária. Sobrelevam, assim, as conveniências administrativo-fiscais do Procurador da Fazenda Nacional, que, ao promover o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00, impõe, mercê da elástica interpretação dada pela jurisprudência dos tribunais superiores, o que a Polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que - e como - o Judiciário deve julgar. 2. Semelhante esforço interpretativo, a par de materializar, entre os jurisdicionados, tratamento penal desigual e desproporcional, se considerada a jurisprudência usualmente aplicável aos autores de crimes contra o patrimônio, consubstancia, na prática, sistemática impunidade de autores de crimes graves, decorrentes de burla ao pagamento de tributos devidos em virtude de importação clandestina de mercadorias, amiúde associada a outras ilicitudes graves (como corrupção, ativa e passiva, e prevaricação) e que importam em considerável prejuízo ao erário e, indiretamente, à coletividade. 3. Sem embargo, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial Representativo de Controvérsia n. 1.112.748/TO, rendeu-se ao entendimento firmado no Supremo Tribunal Federal no sentido de que incide o princípio da insignificância no crime de descaminho quando o valor dos tributos iludidos não ultrapassar o montante de R$ 10.000,00, de acordo com o disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002. Ressalva pessoal do relator. 4. A partir da Lei n. 10.522/2002, o Ministro da Fazenda não tem mais autorização para, por meio de simples portaria, alterar o valor definido como teto para o arquivamento de execução fiscal sem baixa na distribuição. E a Portaria MF n. 75/2012, que fixa, para aquele fim, o novo valor de R$ 20.000,00 - o qual acentua ainda mais a absurdidade da incidência do princípio da insignificância penal, mormente se considerados os critérios usualmente invocados pela jurisprudência do STF para regular hipóteses de crimes contra o patrimônio - não retroage para alcançar delitos de descaminho praticados em data anterior à vigência da referida portaria, porquanto não é esta equiparada a lei penal, em sentido estrito, que pudesse, sob tal natureza, reclamar a retroatividade benéfica, conforme disposto no art. , parágrafo único, do CPP. 5. Recurso especial provido, para, configurada a contrariedade do acórdão impugnado aos arts. , parágrafo único, e 334, ambos do Código Penal, cassar o acórdão e a sentença absolutória prolatados na origem e, por conseguinte, determinar o prosseguimento da ação penal movida contra o recorrido (REsp 1.393.317/PR, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Terceira Seção, julgado em 12-11-2014, publicado no DJe de 2-12-2014).

[4] Portaria nº 75/2012 - Art. 1º. Determinar: (omissis) II – o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

[5] ZANELLATO, Vilvana Damiani. Por que a aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho, subjacente à tarifação administrativa, não se coaduna com o garantismo penal contextualizado na lei fundamental? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; e PELELLA, Eduardo (Org.). 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. Entrará, em breve, em circulação.

[6] Vide: art. 1º, §§ 6º e 7º, art. 2º (com a redação dada pela Portaria nº 130/2012, do MF), arts. 3º, 6º e 7º, todos da Portaria nº 75/2012, do Ministério da Fazenda.

[7] ZANELLATO, Vilvana Damiani. “Que País é esse?”. Correio Braziliense: Caderno Opinião. Brasília, 19-12-2014, p. 11.

Em que pas R 2000000 insignificante

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Em primeiro momento, devo parabenizar a autora, que fez uma síntese muito didática de seu entendimento.

No entanto, eu confesso que discordo dele, apesar de também ser um servidor do MPF, por algumas razões simples:

Em primeiro momento, deve-se lembrar que 20 mil não é considerado um valor insignificante. A Fazenda não inicia uma execução fiscal por valores abaixo de vinte mil, porque o processo é mais caro do que isso. Então, não é correto afirmar que iniciar a persecução criminal, por valores inferiores a vinte mil, é atentar ao princípio da eficiência. Ao contrário, mostra-se ineficiente fazer uso da nossa caríssima máquina judicial para iniciar um processo crime por essa quantia, vez que o custo-benefício não compensa para o Estado.

Outra coisa, o processo criminal, na esmagadora maioria dos casos não resulta em ressarcimento do Estado. Deve-se lembrar que o crime mais comum nestas circunstâncias é o descaminho (art. 334), o qual costuma ser praticado por pessoas pobres, que não têm meios para ressarcir o Estado. Ou seja, ficaremos no prejuízo de um modo ou outro. E, no final de tudo, provavelmente, nem sequer puniremos a pessoa criminalmente, uma vez que um crime com pena máxima de 4 anos, via de regra, prescreve na segunda instância.

Tenho para que o, o melhor que fazemos, em vez de tentar impor aos tribunais superiores uma redução nos critérios da insignificância, é tentar encontrar formas de diminuir o custo da máquina jurídica em nosso país (sim, um processo é muito caro). Bem como, deixar de focar nossos esforços na microcriminalidade e passar a combater os grandes desvios de recursos públicos e a corrupção, males estes, efetivamente danosos para a sociedade brasileira. continuar lendo

Excelente texto, Interessante também o comentário do Dr.Rui Prado.

Sendo mais caro cobrar do que o valor que se tem receber, a não cobrança é uma forma salutar de economia pública, no tocante ao Direito Tributário é valido.

Já quando o assunto é de Direito Penal não se pode ver pelo mesmo prisma, o Estado tem obrigação de manter a ordem, e os custos são inerentes à sua função.

Não se pode olhar quanto se gasta para cobrar ilícitos penais, o princípio da insignificância existe e deve ser aplicado a crimes insignificantes, furto de galinha, furto de caixa de fósforos, etc. continuar lendo

Nossa, não sou da área jurídica mas adoro vocês do jusbrasil. Acabei de chegar da RFB, pois recebi um e-mail dizendo que eu tinha débitos com a receita. Na verdade tinha multas, no total 36 multas de R$ 50,00. referente ao atraso da entrega da declaração do imposto de renda. Nunca imaginei que seria multado por isso. a empresa já estava fechada desde 2008. Mas as multas começarão em janeiro de 2012.
Eu acho um absurdo, ao invés de ficar me multando, porque não me avisou, eles tem, e-mail, telefone, endereço. E preferiu ficar trés anos fazendo uma multa todo mês, não tenho como pagar. Fico mais tranquilo em saber que não irão me atuar. Embora no meu caso R$ 1.800,00 o total de minhas multas é muito relevante.
Eng. Haroldo T. Macedo continuar lendo

Ótimo artigo bem como os comentários que estão sendo realizados. Só lembrando que "Cesteiro que faz um cesto, faz um cento, se lhe derem verga e tempo.". As vezes é interessante observar se foi ocasional ou se é um "cesteiro profissional". continuar lendo

E o que faz o cento,faz o milheiro, Jorge, Já dizia minha madrinha. continuar lendo