Nietzsche e sistema penal na visão de Amilton Bueno de Carvalho
Por Paulo Incott
Possuímos no Brasil um grupo de pensadores críticos do sistema penal que é admirável. Quase todos escrevem e lecionam visões que orbitam, dentro de sua particularidade própria, a criminologia crítica.
Pretende-se na coluna desta semana tecer alguns comentários acerca das percepções de Amilton Bueno de Carvalho. Isso se fará a partir de sua obra Direito Penal a Marteladas e de algumas palestras desse grande professor que tive oportunidade de ouvir pessoalmente, inclusive sua fala no dia de ontem na Uninter, em Curitiba/PR.
Amilton procurou estabelecer relações intrigantes entre a filosofia de Nietzsche e o Direito Penal. Em toda a sua obra, sobre a qual aqui teço breves observações, o paradigma de análise se dá na tentativa de descobrimento de reflexões do filósofo alemão que possam oferecer bases sobre as quais se pensar o poder, a punição, a função jurisdicional, a lei e, sobretudo, a condição humana dentro do convívio social.
Já de início Amilton esclarece que sua visão é, necessariamente, identificada com o “forense”, ou seja, marcada por sua ampla experiência com o cotidiano do direito penal. Com isso, seu olhar sobre a obra de Nietzsche não visa dissecar toda a possibilidade de interpretação daquilo que foi escrito pelo filósofo, mas procura obter da leitura de suas obras um substrato a partir do qual seja possível construir uma crítica bem fundamentada ao sistema penal.
Amilton também deixa claro que fala sob a perspectiva humanista de proteção ao abuso de poder, de limitação da barbárie penal, de resistência às desmesuras do castigo. Entra aí a motivação para escolha do título de seu livro. O martelo nietzschiano tem por objetivo “destruir ídolos e demonstrar o seu vazio”.
Fica clara a intenção do autor em “despedaçar” o senso comum punitivo, que enxerga na pena a medida suficiente e necessária para garantia da paz social e, em verdade, para objetivos muito mais místicos como o fim da violência e da “impunidade” (que até agora ninguém conseguiu definir/demonstrar, diga-se de passagem).
Nas palavras do autor sua obra cumpre o objetivo de uma “grande declaração de guerra... Se pretende, com o apoio do martelo de Nietzsche, denunciar, agredir, abalar e se possível destruir alguns dos monstruosos ídolos engendrados pelo saber que toma conta do Direito Penal...”.
Pode-se dizer que Amilton foi (tem sido) bem sucedido em sua luta? Creio que sim.
Ainda que muitos dos “ídolos” denunciados (senso comum e atores do direito penal que se colocam na posição de cruzados punitivistas) ainda existam e até tenham ganho força nos últimos tempos, o sucesso de uma empreitada tal qual a do autor não pode ser medido pelos efeitos imediatos que produz, mas pelas mentes que consegue influenciar, motivar, “energizar” para se aliarem ao debate e à construção de algo melhor.
Neste sentido Amilton continuará sendo uma poderosa força de atração e coesão.
Tentando identificar alguns pontos de destaque da obra em comento farei a menção de duas questões que me chamam atenção, tomando cuidado em não aprofundar a análise com a intenção de incitar o leitor a se debruçar sobre a obra como um todo.
O primeiro deles tem que ver com a necessidade da punição. Amilton leciona, a partir sempre do contributo da filosofia de Nietzsche, que o conceito de impunidade funciona em nossa sociedade como uma espécie de mantra ao qual recorrem os “fiéis” da punição afim de legitimar ou ao menos justificar o gozo pelo castigo aplicado ao outro.
Conforme o autor explica não existem estudos científicos relacionando a severidade da punição com a diminuição da delinquência. Assim, a “crença” na sanção penal e na “causa” da criminalidade enquanto “impunidade” requisita verdadeira fé. Com o autor (2013, p. 81):
"E como crença que é, depende unicamente da fé (justifica-se por si-mesmo): não interessa saber se é verdade ou não, se isso está comprovado ou não – a fé indica que é e pronto, é-porque-é! [...] a fé dos perseguidores de plantão e do senso comum impõe que assim seja, logo, vive-se como se assim fosse – eis a verdade que não é verdade e que acaba por ter efeitos de verdade!"
Pensando inclusive nos pressupostos da punição segundo a dogmática penal atual podemos nos beneficiar grandemente de uma percepção trazida por Amilton acerca da visão de Nietzsche sobre o uno irrepetível.
Um dos principais fundamentos que permite a punição dentro da lógica finalista é a exigibilidade de conduta adversa, ou seja, o juízo de reprovabilidade que se faz mediante a análise de possibilidade do agente (objetiva e subjetivamente) poder ter agido conforme o direito.
Ora, Nietzsche (In CARVALHO, 2013, p. 86) defende a impossibilidade deste juízo em A Gaia Ciência quando, tratando do uno irrepetível, diz que
“quem ainda julga que 'assim deveriam agir todos nesse caso' não chegou a andar cinco passos no auto-conhecimento: do contrário saberia que não há nem pode haver duas ações iguais...”.
Importante perceber como o filósofo alemão nos permite descontruir mesmo alguns dos conceitos fortemente enraizados sob o manto de racionalidade ou lógica de nosso sistema penal (aí incluso o arcabouço teórico que o sustenta), dando ensejo a uma crítica criminológica robusta.
Um segundo e breve destaque que gostaria de fazer se dá sobre a questão da lei e do poder. Para não me delongar fico com a fala do próprio Nietzsche quando este diz, em Humano, Demasiado Humano, que “ser legislador é um forma sublimada de tirania” (CARVALHO, 2013, pp. 86-87).
Após décadas de estudos voltados à Criminologia Crítica e milhares de páginas escritas acerca da seletividade penal não é possível discordar da assertiva do filósofo. As leis penais protegem desproporcionalmente bens jurídicos funcionais à logica de mercado e incidem de forma desproporcional sobre os indivíduos, com forte inclinação a diferenciação mediante o status social e coloração da pele.
Haveria muito mais a ser dito. Porém, encerraremos na mesma linha de pensamento que permite os inúmeros “talvez” da linguagem nietzschiana.
Fica o incentivo para que o leitor que tanto nos honra com o tempo que reserva para a consideração desta coluna se delicie com a obra de Amilton, onde poderá refletir sobre a função paterna da lei, os mecanismos sofisticados de tortura da modernidade, a absoluta necessidade de leitura da lei como mecanismo de defesa do mais débil, a importância de permitir espaços de dúvida no direito (e nas ciências sociais em geral), a imoralidade do poder e tantos e tantos pontos fundamentais para oferecermos alguma resistência ao gozo coletivo de punição e nos tornarmos mais humanos; demasiadamente humanos.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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