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26 de Abril de 2024

Liminar negada: angústias de uma advogada criminalista

há 9 anos

Liminar negada ang

Por Letícia de Souza Furtado

Segundo a mitologia grega, o tempo é Chronos[1] – sequencial e quantitativo –; ou Kairós – qualitativo[2]. Na esfera subjetiva, é a vida do indivíduo, obra das Moiras Cloto, Láquesis e Átropos, três irmãs fiandeiras que confeccionam o tapete da existência[3]. A primeira tece o fio no nascimento; a segunda o puxa, e é responsável pelo desenrolar do viver; e a terceira é a inflexível, corta linha.

Tenho pensado muito nisso. Quinta-feira passada, meu telefone tocou: estavam precisando de mim na delegacia. Para uma advogada iniciante, seria a glória, não fosse o drama em que o cliente se encontra. Cheguei ao DEIC e encontrei uma mulher fragilizada, a quem chamarei aqui de Raquel. Ela me contou que, há quase dez anos atrás, seu marido, ao qual denominarei de Felipe, fora condenado criminalmente, sendo-lhe impostas penas restritivas de direitos – prestação de serviços à comunidade e pagamento de sanção pecuniária. Como ele não cumprira a sanção na íntegra, o juiz expediu mandado de prisão, e o rapaz foi preso em pleno ambiente de trabalho.

Entrei no “xadrez” da delegacia, e dei de cara com um guri cuja aparência não seria reprovada por Lombroso. Ele me pediu apenas para dizer a sua esposa que estava bem, e frisou: “bem mesmo”. Por óbvio, estava apenas tentando tranquilizar a menina à distância. A Policial me informou de que ele seria conduzido ao Instituto Penal de Charqueadas – IPCH –, “pois é o único lugar em que se tem vagas”, e então começou a correria.

Raquel me levou até sua cidade, lugar em que o processo tramitou. É um pequeno município da Grande Porto Alegre, chamado de “cidade-dormitório”, pois a maioria de seus moradores trabalham fora e só voltam para dormir. No caminho, contou-me que o marido havia se envolvido em um acidente de trânsito, situação em que dirigia sua moto por uma grande avenida, quando um homem embriagado se precipitou para o meio da via. Com a colisão, o homem morreu, e Felipe ficou gravemente machucado, sendo hospitalizado.

Mais tarde eu fui ler a sentença e vi que um dos argumentos utilizados para o condenar foi o de que ele estava acima da velocidade permitida. Estaria a 70 km/h. Perguntei-me, então: sendo isso tão escandaloso, por que razão quando eu dirijo a 60 km/h todos me ultrapassam? O caso me fez lembrar de um conceito ensinado na faculdade: infelicitas facti. Não há dolo, nem culpa, é simplesmente um fato infeliz, que pode ocorrer com qualquer um, basta estar na hora e local errados. A Câmara Criminal mais humanitária do nosso Tribunal de Justiça – para quem não sabe, é a Terceira – já decidiu com base nesse instituto; mas outros órgãos fracionários, parecem esquecer que o Direito analisa a realidade humana, com todos os seus prismas. Esse foi o único processo criminal a que Felipe respondeu.

Enfim… Raquel me disse que o marido tem uma filha de 12 anos, a quem paga pensão e acompanha de perto. Informou, ainda, que o rapaz está sempre trabalhando de carteira assinada. Chegando à cidadela, escrevi uma peça, correndo, na sede da OAB, e entreguei na vara de execuções criminais – VEC – um pedido de liberdade e de marcação de audiência admonitória. Felipe já havia sido intimado a se apresentar no cartório para justificar o descumprimento da pena, mas “quedou-se inerte”. Informei que o executado é empregado, não patrão, trabalha fora da cidade e, sem gerência sobre os próprios horários, fica impossibilitado de comparecer no colégio para prestar serviços à comunidade. Deixar de comparecer em cartório para apresentar justificativas foi o que bastou para jogá-lo num círculo vicioso que ignora o princípio da proporcionalidade e da individualização da pena; começou ali o desenrolar de um fio de Láquesis afiado com cerol.

No dia seguinte, como é de praxe ocorrer com os presos em regime aberto logo que entram no presídio, ganhou uma saída temporária de sete dias. O Juiz da VEC decidiu meu pedido, negou tudo. No sistema, ficou registrado que os autos estavam em “transferência para outra comarca”. Era para esperar o PEC – processo de execução penal – chegar em Porto Alegre; mas ele, simplesmente, não chegava. Entrando em contato com a Vara, diziam: “está em transferência”. “Está”: verbo flexionado no presente do indicativo, que expressa fato atual.

Nervosa com a demora, impetrei um Habeas Corpus, alegando constrangimento ilegal em razão de Felipe ter sido recolhido em um presídio incompatível com seu regime de cumprimento de pena. O recurso cabível, a princípio, seria o agravo em execução; mas não nesse caso, pois os autos estavam inacessíveis. Também apontei que a detração havia sido mal aplicada, pois as cento e oitenta e oito horas de serviços prestados reduziram a condenação em um mês e quatro dias. Vejam, em realidade, deve-se subtrair um dia de pena para cada dia de tarefa. Cento e oitenta e oito dias, portanto, não trinta e quatro. Esse foi outro ponto no qual bati: a imposição de medida mais gravosa do que outras possíveis. Penso que, tendo cumprido mais de um quarto da pena, está aberta a possibilidade de reconversão para penas restritivas de direito, nos termos do art. 180, II, da Lei de Execucoes Penais.

Distribuído, o Habeas caiu na famosa “Câmara de Gás”. Liminar negada. Encaminhei um e-mail à VEC de origem, perguntando a respeito da localização dos autos – o telefone ninguém atendia –, mas não obtive respostas. Fui falar com um Juiz muito estimado pela sua preocupação social. Apesar de não existir a menor chance de o processo de Felipe ficar sob sua responsabilidade, o Magistrado foi muito receptivo, sensibilizou-se com o problema, e, dessa vez, quem encaminhou um e-mail àquela vara foi ele, perguntando o código de rastreio do malote pelo qual o processo fora enviado. Isso, depois das 18 horas da tarde, quando o expediente no foro havia terminado. Benditos sejam os vocacionados.

Na manhã subsequente, telefonei para a vara de origem. Dessa vez, a ligação foi atendida. O rapaz com quem falei disse-me que o malote saía da direção do Foro. Liguei para lá. Pediram-me para ligar mais tarde, pois procurariam o número de rastreio para mim. Ao retornar, fui informada de que o processo NEM HAVIA SAÍDO DO CARTÓRIO. Olha, nem preciso dizer. Eu sou de perdoar o que fazem para mim, contudo, pelos outros eu viro bicho. “Segunda chegará”.

Por Deus, chorei de raiva com o descaso. Nisso, toca meu celular. Era a Raquel me dizendo que o Felipe estava se apresentando no Instituto Penal, pois a saída temporária havia terminado, e que os servidores da casa disseram para eles que o rapaz ficaria lá em tempo integral, por trinta dias, sem sair para trabalhar. Liguei para a administração do estabelecimento e tive de ouvir uma agente da Susep me perguntar: “Tu conhece a LEP? Não parece”. Isso, porque eu frisei que o rapaz estava em regime aberto, tem emprego fixo – onde, inclusive, foi cumprido o mandado de prisão – e deveria sair durante o dia para trabalhar. “Só com ordem judicial”, ela me disse. Assim dispõe a lei “que eu não conheço”:

Código Penal

Art. 36. O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado.

§ 1º – O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.

Lei de Execucoes Penais

Art. 93. A Casa do Albergado destina-se ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime aberto, e da pena de limitação de fim de semana.

Art. 94. O prédio deverá situar-se em centro urbano, separado dos demais estabelecimentos, e caracterizar-se pela ausência de obstáculos físicos contra a fuga.

Art. 95. Em cada região haverá, pelo menos, uma Casa do Albergado, a qual deverá conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para cursos e palestras.

(…)

Art. 114. Somente poderá ingressar no regime aberto o condenado que:

I – estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente;(…)

Bonita a lei. Quem não vê o sistema prisional na prática deve até se emocionar lendo isso. É de rir para não chorar – com algum esforçado e residual respeito. Então ficamos assim: sem ordem judicial, só se pode onerar. A lei define a forma como será a execução, mas, se não tem vagas em estabelecimento adequado, vai no mais gravoso mesmo. E se chorar vai duas vezes! Para isso, não é necessário ordem do Juiz. Buenas, depois de ser “elogiada” pela gentil moça da Susep, fui para o Foro Central, sem PEC mesmo – pois até agora não chegou, está “em transferência” há nove dias – conversar com assessora do Magistrado responsável pelo IPCH. Isso foi na sexta agora. Ela me prometeu expor, na segunda, o caso ao seu chefe, para que ele analise a possibilidade de implementar prisão domiciliar. Queimados todos os cartuchos, só resta aguardar. O Juiz da VEC da cidade-dormitório girou com força o carretel do fio de Láquesis e foi para casa.

Impotência é o quê? Hoje é segunda, um dia chuvoso, o clima é ainda mais triste no presídio, onde está o meu cliente. Como não pensar nisso? Será que um dia eu aprendo? Esse texto é o Habeas Corpus da minha mente, e a autoridade coatora sou eu.

Liminar negada.

Fonte: Canal Ciências Criminais

Liminar negada angstias de uma advogada criminalista

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Excelente artigo...tenho um cliente condenado a 6 anos em regime semiaberto que tem emprego, esposa e três filhas que dependem dele para sua subsistência, mas, o regimento interno do presídio exige que o mesmo fique detido por 1 ANO!! para adaptação...Eis que surge a indignação: Condenado em semi-aberto preso por 1 ano por mera burocracia? Habeas Corpus? Entidade Coautora?
O foro de Osasco no qual correu seu processo não permitiu que levasse em mãos seu processo (com despacho da juíza) em mão para a VEC da Barra Funda, comarca em que preso cumpre pena, com o argumento que "na semana passada" foi decidido que todos os processos seriam mandados por meio eletrônico e que o mesmo demoraria em média 7 dias"!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Processo eletrônico sinônimo de agilidade??
Fato é, a cartorária indo em contramão com o despacho da juíza não permitiu que levasse em mão o processo que demoraria 40 minutos para chegar a VEC competente...enquanto isso meu cliente encontra-se preso e sem contato com as filhas na qual ele não quer que o veja na condição de carcereiro!
E Eduardo Cunha? 5 milhões no bolso o dormindo numa king-size em sua bela mansão.
REZEMOS TODAS AS NOITES PELA MORTE DA JUSTIÇA COLEGAS JURISCONSULTOS" continuar lendo

Excelente texto!!! continuar lendo

Parabéns Doutora pela aguerrida advogada que demonstras ser. Bem vinda ao famigerado universo dos advogados criminalistas que cotidianamente se deparam com abusos e descasos do judiciário, e que assim como a Drª, por não se calar e não abandonar o bom combate são tidos por insolentes, impertinentes e por vezes arrogantes em face da truculência e má vontade de alguns servidores e membros do judiciário. O mais triste de todo este cenário dantesco é ver que ao se tratar de apenas mais um "Zé Qualquer" o Judiciário empaca, o malote some, o processo não chega, ninguém avoca os autos e decide nada, e ao revés quando se trata dos "Ingenuínos e ´Dr. Zeus Dirceus" a engrenagem anda, o processo é rápido, a medida é sempre eficaz, e ai sim, até a liminar é deferida. Parabéns pelo texto e boa sorte na labuta!!! continuar lendo

Prezada Dra. Letícia, li seu texto e confirmei o que já haviam me falado. O direito criminal, mais apropriadamente a área de trabalho criminalista, é um tanto mais espinhosa que as outras áreas jurídicas. Contudo, não discordo de uma propensa afirmação:"é uma área empolgante e até emocionante". Mas, não estou advogando nesta área. Fugi dela por motivos semelhantes ao aqui já citado. Parabenizo a colega pelo grande esforço que desenvolve no seu trabalho jurídico, buscando o juízo e a razão em defesa dos excluídos e injustiçados. Em minhas atuações nas áreas cível e trabalhista, também tenho encontrado dificuldades em níveis de semelhanças com o encontrado nesse seu texto. Inclusive com a derrota de meu cliente a nível de Tribunal. Caso em que me deixou até sem dormir por alguns dias. Porém, no final, vi que, nesta vida e nesta nossa profissão, nem sempre vence a razão. Pois, o homem invariavelmente, costuma descumprir a Lei feita pelo próprio homem e jogar o direito no lixo. No final, após a derrota no recurso, temos que nos resignar e entender que, aqui na terra todos somos um corpo com matéria, alma e espírito. Portanto, materialmente falando somos muito limitados a vários fatores, inclusive à imposição das injustiças.
Porém, somos invencíveis quando militamos não somente com as ferramentas da nossa profissão, mas, também com as armas do espirito, "A Armadura de Deus" Isso não quer dizer que, com essa armas não teremos nossas baixas em nossas litigâncias. Mas que, mesmo com algumas baixas em nossas litigâncias, ainda assim, seremos vitoriosos. "Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?" (1 João 5:5).
Assim, mesmo que sejamos injustiçados, devemos sentir que, ainda assim, fomos vitoriosos, porque agimos de acordo com a justiça de Deus.
Nesse meu entendimento, ao final de alguma petições costumo assentar no rodapé delas: “ Se o homem não fizer justiça com as Leis dos homens, Deus cobrará dele, e fará justiça com a Lei de Deus” ( Mateus 5: 20)
"Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus." continuar lendo

Tens razão, Jorge. O caminho "mais fácil", é sempre mais sedutor. Assim, juntarmo-nos ao réu, para caminhar com ele por uma estrada tortuosa já é vencer. continuar lendo